segunda-feira, 18 de junho de 2012

35 - Canção de Amor e de Paz



            De todas as coisas que o soldado esperava ver quando levasse Aline até a mansão, a última possibilidade em sua mente era de que presenciaria o ataque rebelde que estava se desenrolando naquele momento. Dezenas de Fascin atacavam o lugar mais protegido da ilha, e o pobre soldado se perguntava o que eles deixaram escapar. Com certeza, aquele esconderijo que eles dizimaram não era o único, embora, pelo número do exército atacante, era de se supor que as ruínas fossem a principal base de operações, e o resto era resto.
            Ainda assim, restos costumam incomodar. Eles irritam os seus olhos e entram como farpas em seus dedos. Não podem te machucar seriamente, mas sua insignificância eleva-se em um patamar de notoriedade quando nada mais importa, então é preciso se livrar dos restos.
– Fiquem aqui – disse o soldado para Aline e o médico, que tentava tranquilizá-la. Era um soldado bem treinado, como todos os Menegaro. Sua arma era mais poderosa, como a de todos os Menegaro. Ele não tinha medo de enfrentar um exército, se isso fizesse bem para a família. Como qualquer outro Menegaro. Mas com certeza não estava preparado para ouvir um segundo bater de portas no veículo que dirigira até ali, e, virando-se para ver o que aconteceu, se deparou com Aline, manca e sangrado, se apoiando na lateral do carro com uma pistola na mão. Seu rosto mostrava a dor que estava sentindo, mas também mostrava a fria ira de quem vê seu lar em chamas.
– Você vai me ajudar a entrar na minha casa, e vai lutar ao meu lado até esses pobres do caralho estarem todos no chão –
            Se fosse qualquer outra mulher, ou qualquer outro soldado, o corajoso homem tentaria insistir para que permanecesse no carro, que esperasse ao menos a ferida parar de sangrar. Mas como dizer não àquela mulher? Ela lhe enchia de admiração cada vez mais, e tudo que ele pôde fazer foi acenar que sim com a cabeça, e permitir que ela apoiasse um braço ao redor do ombro dele, a pistola firme na outra mão.
            E foi assim que os dois abriram caminho por detrás das linhas inimigas, penetrando pelos portões que foram previamente derrubados por Lia, e se dirigindo ilesos para dentro da mansão, onde nenhum rebelde teve sucesso em invadir.
– Chamem os médicos, aqui e agora! – foi a reação de Hércules, que sequer empunhava uma arma. Aparentava toda a confiança de quem sabia que seus homens poderiam protegê-lo, que aquilo não era nada além de uma imprevista praga. Eram só vermes em seu quintal, comendo suas alfaces. Não era uma ameaça real. Mas a sua filha ferida? Alguém iria pagar caro por aquilo.
– Minha querida, você está bem? –
– Nós acabamos com o esconderijo, pai. Esses aí do lado de fora são o que sobrou dos que fugiram. Os Fascin não são mais uma ameaça –
            Hércules sorriu. Uma imagem rara de se ver. Não durou muito tempo. Um informante que corria pelas escadas para alcançar o Poderoso Chefão trazia notícias mais perturbadoras do que um ataque de vermes. Enquanto Lia e Hércules trocavam informações sobre o sucesso da missão e o fracasso em conter uma única prisioneira, a porta da enfermaria particular da família foi escancarada, e uma figura sem fôlego se apoiou na parede antes de dar a notícia.
– Um espião... dos Manentti... Eles sabem do ataque... Tão vindo pra cá –
            Hércules entendeu o que estava acontecendo. O rival de sua vida inteira, Giuseppe, se aproveitaria do único momento de aparente fragilidade da família Menegaro para tentar derrubá-la. Não iria acontecer.
– Vem minha filha, nós vamos passear de barco –
– Senhor? – perguntou o soldado, pela primeira vez duvidando do pulso firme de seu chefe – Estamos abandonando a mansão? –
– Não “estamos”. Preciso levar minha filha para um lugar seguro, apenas eu, ela, os médicos e meus guarda-costas. Confio plenamente que você serão capazes de defender a mansão. Foi para isso que eu treinei vocês. Se está se sentindo inseguro, diga para todos que vão até o subsolo e abusem do nosso arsenal pesado. Vamos esmagar essa ilha se for preciso, mas não seremos derrotados –
            O informante, que apenas ouvia as notícias e as passava para seu chefe, não era de um alto cargo de confiança. Era apenas um garoto de recados e, por isso, não sabia o que era o tal de “subsolo”, e sempre pensou que os soldados já usassem as armas pesadas.
– Senhor... O que tem no subsolo? –
– Entre as armas militares importadas e os trajes especiais? Um tanque, meu caro rapaz, um tanque –

            “Vai ficar tudo bem”, Guilherme repetia sem parar, amparando Lia, ajudando-a em tudo o que podia. Ela estava feliz por ter Guilherme de volta, mas não gostava nem um pouco de seus óculos e sua nova expressão, da mesma forma como ele não gostava nem um pouco de sua aparência esquelética e quebradiça. Mas não podiam ignorar a história que tinham juntos, e continuariam juntos até o fim. Até o fim deles ou até o fim da ilha. Finalmente colocariam em prática o plano de fugir daquele lugar, embora a situação não fosse nem um pouco parecida com o que eles haviam imaginado. Não poderiam ter previsto tantas explosões e mortes, tanta guerra. Sangrenta Tenemissa sempre foi, mas sempre foi ao estilo de amigos esfaqueando amigos pelas costas, família brigando com família, vermes roubando matando e estuprando. As últimas batalhas fugiam completamente ao estilo de morte pacata e cruel que todos estavam acostumados. Sim, comparando com os últimos acontecimentos, pode-se pensar que a ilha de antes era pacata.
            “Mas já não importa mais”, pensou Guilherme. “Nós estamos saindo daqui, de um jeito ou de outro”. O plano agora era roubar um barco do lado Manentti da ilha, o porto oficial. Não ficava mais perto, mas, em compensação, o lado Menegaro tinha apenas o porto particular da mansão. Rodeados pelo oceano, quem tem domínio marítimo tem a vantagem, e esse é o único motivo pelo qual Hércules nunca conseguiu derrubar Giuseppe.
– A gente ta indo muito devagar – reclamou Lia.
– Calma, Lia, calma. Vamos encontrar um carro em algum lugar e podemos dirigir até o porto –
            Lia estremeceu diante daquela ideia, e Guilherme percebeu. Ela ainda estava traumatizada pelo acidente, mas sabia que não havia outra alternativa. Com o tempo, os dois perceberam juntos que a noite estava muito silenciosa. O que aconteceu com os barulhos de tiro? A batalha estava terminada, mas qual lado venceu? Lia se perguntava quem estivera lutando, enquanto Guilherme se convencia de que não importava mais qual lado perdera. Ele decidiu abandoná-los, como bem lhe lembrou o falecido Luiz. “Não sou um herói”, pensou, “Eu só quero sair daqui com Lia, e ninguém mais. Que diferença faz se os rebeldes ganharam ou não? To saindo daqui mesmo. E ainda por cima Luiz disse era só uma terceira família surgindo, então não era nada do que eu imaginei. Não tenho pelo que lamentar”.
– Guilherme... –
– O que foi? –
– Você acha que isso tudo teria acontecido se a gente não tivesse se separado? –
            Guilherme meditou por um momento se ela estava falando de quando eles seguiram por ruas opostas, logo após a explosão de seu apartamento, ou se ela havia voltado mais ao passado, para as brigas constantes, para quando o namoro dos dois não deu certo. Para quando eles decidiram que seriam apenas sócios. Provavelmente, ela se referia a ambas as situações.
– Se a gente não tivesse se separado, não chegaríamos tão longe –
            Lia percebeu que seu companheiro ficou em dúvidas sobre o que ela estava falando, e percebeu também que ele acabara de responder as duas perguntas que estavam subentendidas uma na outra.
– É verdade que tudo isso é culpa nossa? –
            Guilherme desacelerou o passo. Aquela pergunta era inocente demais. Mesmo em seu momento mais frágil, quando havia matado um homem pela primeira vez, Lia nunca foi tão inocente. Algo havia mudado nela, sim, mas, a despeito de sua aparência frágil, o espírito de Lia estava agora duro feito uma pedra. Não havia mais inocência naqueles lindos olhos, então... Ela o estava testando. E desde quando ele pensava tanto? Não era apenas um soldado que só sabia apertar o gatilho, como bem disse Luiz? E porque ele agora o citava tanto dentro de sua própria cabeça? Guilherme ajeitou os óculos quadrados com os dedos, empurrando-os mais para cima no nariz, num movimento tão característico que, se eles ainda tivessem lentes, elas brilhariam de forma singular, refletindo ideias fantásticas do cérebro calculista que se escondia atrás daqueles aros. Mas o cérebro não era mais o mesmo, e os aros não mais suportavam duas lentes.
– Isso tudo é culpa da ilha – respondeu Guilherme com simplicidade, mas sua voz saiu seca. Para quem olhasse aquele casal, nada de mais estaria acontecendo, embora uma dança complexa estivesse se desenrolando nas mentes conectadas daqueles dois indivíduos tão próximos, que estavam agora testando a que ponto sua distância se estendia. Eles não eram mais os mesmos, nenhum dos dois. Embora ambos fossem jovens adultos, uma voz mais velha lhes diria que tinham acabado de deixar sua infância para trás, e aquele momento provava isso. Guilherme e Lia amadureceram da forma mais dura possível, sentindo na carne a responsabilidade de um mundo insano, e procuravam em vão um no outro algo que lhes lembrassem de como era a vida antes daquilo.
“Ainda é a Lia”
“Ainda é o Guilherme”
“Só que ela está diferente, não parece mais a mesma”
“Só que ele está estranho, não parece mais ele mesmo”
            Como um romantismo às avessas, eles se olharam nos olhos pela primeira vez desde que aquele complicado balé de testes e desconfiança havia começado. Ambos tinham sentimentos duvidosos em relação ao outro agora, e precisavam colocar seu futuro à prova. A parte não dita do plano sempre foi que eles voltariam para os braços um do outro quando tudo estivesse terminado, mas, até lá, não poderiam cair em tentação. Só que o plano não era mais um plano, era só a corrida pela sobrevivência. Sócios ou não, eles precisavam fugir da ilha. Nunca houve a necessidade tão gritante quanto agora.
            E foi assim, como que por acaso, que seus lábios partidos se juntaram mais uma vez. Cada um sentindo na boca do outro o gosto de sangue, e sem nenhum nojo ou receio. O sangue só juntava à saliva mais da alma de cada um, como um contrato selado e carimbado, eles agora estavam novamente presos, grudados em seus corpos no meio da rua mal iluminada. Era o clímax máximo do suspense que haviam criado. A bailarina invisível não mais existia, porque toda a desconfiança agora precisava ser deixada de lado. Guilherme e Lia não mereciam e nem poderiam mais confiar um no outro, pois não conseguiam sequer confiar em si mesmos. Eles eram Tenemissianos de verdade, e toda e qualquer relação que viesse deles seria de uso e desfruto alheio, e nada mais.

            Algumas horas mais tarde, Hércules e Aline assistiam do conforto de seu barco uma série de explosões, enquanto discutiam táticas para serem passadas pelo celular. Felipe fora previamente avisado que não voltasse para a mansão, para sua própria segurança. Ao invés disso, ele e seus homens poderiam fazer um ótimo trabalho espionando as fronteiras descuidadas do território dos Manentti. Do outro lado da ilha, Giuseppe também acompanhava a batalha pelo celular, embora não pudesse ter a vista privilegiada de seu rival. Para os moradores da região, a ilha estava afundando. Ninguém se importava de verdade com eles, então não fazia diferença se um prédio repleto de pessoas fossem atingido sem querer por um tiro descuidado do tanque, ou de alguma bazuca. Tenemissa nunca vira uma briga de tamanha proporção. Ambos os lados estavam dando tudo de si, como se não houvesse mais nenhuma chance, nenhuma noite ou nenhuma ilha. Era a hora da verdade, e ninguém daria para trás.

            O policial gritava pelo rádio. Incapaz de acreditar no que ouvia, pedia mais informações. Uma guerra daquele tamanho poderia dizimar não apenas uma, mas as duas famílias juntas, e não importa quem fosse vencer, ambas ficariam sem dinheiro. E isso, para a polícia, é muito ruim. Guilherme e Lia se aproximavam sorrateiramente do homem fardado, enquanto este desligava o rádio e montava em sua adorada moto. Estava irritado demais com o que acabara de acontecer, e era orgulhoso e confiante. Ele não era páreo para aqueles dois veteranos de fugas impossíveis. Surgindo das profundezas de um beco, Lia se arrastou, suplicante, e o policial parou para olhar a figura esquelética que se aproximava. “Mais um verme”, ele pensou, se preparando para sair em disparada antes que ela chegasse perto. Ignorar ela sempre melhor. Antes que conseguisse dar a partida na moto, Guilherme o empurrou, e ele caiu aos pés de Lia que, sorrindo maliciosamente, cortou seu pescoço com a tesoura. Toda vez que ela fazia isso, se sentia um pouco mais completa, e por aquele instante Guilherme a temeu.
            Enquanto corriam velozes pelas ruas abandonadas as primeiras explosões se fizeram ouvir. Guilherme não desacelerou, mas olhou junto de Lia para trás, na direção da imensa bola de fogo que subia ao céu. Ambos se lembraram imediatamente daquela outra bola de fogo, que marcou o momento da separação e de quando toda aquela bagunça começou de verdade.
– Você ta indo devagar demais! –
– O QUE? – Gritou Guilherme em resposta, pos vento que passava veloz pelos seus ouvidos o impedia de entender o que Lia acabara de falar.
– DEIXA EU DIRIGIR – gritou Lia, lutando contra a força do vento no ouvido de Guilherme. Ele entendeu e desacelerou, parando a moto no meio do asfalto. Concordava que Lia era melhor piloto do que ele, mas tinha sérias dúvidas quanto a deixar dirigir uma pessoa que foi atacada e desmaiou duas vezes em seguida. Apesar disso, Lia não demonstrava sinais de que iria cair novamente. A adrenalina tomava conta de seu corpo, e logo as ruas passavam como borrões enquanto a moto viajava a mais de 150 km/h.

            Quando Pedro viu o tanque, seu coração parou de bater por quase um segundo. Definitivamente, eles não estavam preparados para aquilo. Enquanto se aproximavam da mansão, já se espalhava por todos os lados a clara mensagem de Hércules, em corpos de rebeldes que diziam “Não tente, você não vai conseguir vencê-lo”.
Mas eles chegaram até ali, tinham que continuar.

            O território dos Manentti estava indescritivelmente mal vigiado. Silencioso não estava, pois os anônimos moradores da ilha saiam de seus apartamentos para tentar descobrir o que estava acontecendo, que barulho era aquele e o que significavam aquelas explosões. Apesar disso, não se via um único delinquente da família tentando pôr ordem nas ruas. Foi fácil, para não dizer sem-graça, chegar até o porto. Guilherme e Lia se perguntaram por que tinham demorado tanto tempo planejando, planejando e fracassando em fazer algo tão simples. Foi quando ouviram nas conversas o motivo de tamanho desleixo: o confronto final estava acontecendo, naquele exato momento, na mansão Menegaro. Ninguém poderia pedir por oportunidade melhor. Ninguém sequer poderia sonhar ter tanta sorte. E Guilherme e Lia não foram os únicos a perceber. O porto em si não estava vazio por falta de seguranças, estava vazio por falta de seguranças vivos. A parcela ativa e inteligente daqueles moradores anônimos, que também sonhavam em um dia sair daquela ilha, não deixaria que o momento passasse em branco. Todos os barcos do porto estavam sendo tomados por cidadãos comuns, enquanto Giuseppe se trancafiava em sua sala-segura, com medo da rebelião chegar até ele. Ninguém se importou. A liberdade é mais urgente que a vingança, e Guilherme e Lia conseguiram se infiltrar em meio àquelas pessoas e pegar um lugar em um dos navios superlotados. A notícia não se espalhou por informação, e sim por curiosidade. Numa hora como aquelas, ninguém avisa o vizinho de que ele pode fugir para ter uma vida melhor, todos querem apenas garantir o seu lugar. Ainda assim, muita gente apareceu, e não demorou para que pessoas começassem a se atirar no mar, todos gritando e lutando por uma vaga para fora do inferno. Navios e barcos partiram apressados, tentando evitar uma superlotação. Cargas enormes foram atiradas ao mar. Nada daquilo seria necessário. Poderiam conseguir o que quisessem assim que chegassem ao paraíso onde, tinham certeza, seriam bem aceitos.

            Hércules caminhou sobre os destroços de sua linda mansão. Estava seguro agora, ele e o que restou de sua família. As forças inimigas foram repelidas, embora ele não tivesse mais suas próprias forças para contra-atacar. Tudo o que sobrou do império que com tanto empenho ele havia levantado a partir do pó, foi o próprio pó. Aline o consolava, dizendo que eles ainda podiam reconstruir tudo de novo, com mais força que antes. Giuseppe também estava sem nada, sem ter como continuar aquela briga. Giovanni Fascin sequer poderia se considerar um jogador nesse cabo-de-guerra. Eles ainda poderiam dar a volta por cima.
            Com as três famílias sem controle algum, sem dinheiro algum e sem respeito algum, os tenemissianos se deixaram respirar aliviados. Até mesmo a polícia não seria mais um problema tão grande, e os vermes se recolheriam para o fundo dos esgotos. Poderia aquela ilha viver um tempo de paz? Talvez, temporariamente. Era com pesar que todos sussurravam para seus filhos que ia ficar tudo bem, pois eles sabiam que logo tudo iria voltar a ser como era antes, e no fim nada nunca muda. Não importa que família ganhe ou perca. Se há duas, três ou apenas uma assumindo o controle total. Na prática, nunca fez a menor diferença.

            O dia já havia amanhecido quando o navio que Lia e Guilherme embarcaram encalhou em uma praia estranha. Como ninguém a bordo sabia da localização dos portos, tudo o que eles puderam fazer era, na base da tentativa e erro, lançar o navio para frente e torcer para que ele chegasse a algum lugar. Onde ele chegou, mais tarde eles descobririam, foi em uma praia entre Rio de Janeiro e São Paulo, embora jamais conseguissem dizer de certeza se Tenemissa fica mesmo na linha desses estados, pois não seguiram um rumo reto com o navio.
            O casal não teve pressa em sair. Deixaram o restante dos fugitivos se acotovelando, empurrando e correndo, enquanto as pessoas que passeavam pela praia viam a cena assustadas. Não levou muito tempo para juntar uma multidão que tirava fotos do navio encalhado na areia por falta de porto e de marinheiros competentes. Calmamente, Guilherme e Lia caminharam de mãos dadas, observando o novo mundo à sua volta, principalmente aquelas pessoas que não tinham no rosto a expressão que todo tenemissiano tem. Eles eram pessoas que nasceram com o poder de escolher seu próprio destino, livres de opressão e desfrutaram desde cedo as belezas de um mundo maravilhoso. Guilherme se encantou com eles, mas Lia teve receio. Não gostava daquelas pessoas.
– O que você acha que vai acontecer com a ilha? – Perguntou Lia, olhando para o vazio do horizonte.
– Que importa? Nós saímos – respondeu Guilherme, mas alguma coisa em seu tom de voz irritou Lia. Não era porque ele parecia não se importar, isso seria justo. Era justamente o contrário, como se ele estivesse escondendo uma afeição quase que paternal. Ambos permaneceram em silêncio, olhando para a direção de onde pensavam estar Tenemissa. Lia pensava em Magali, e se ela teria uma boa vida. Guilherme lutava contra pensamentos novos. Eles lhe eram estranhos, mas pareciam fazer todo o sentido do mundo. Lembrou de Carlos, o policial que tanto lhe caçara, que sobrevivera a sua armadilha da granada, e que morrera sem que Guilherme soubesse de um terço de sua história. Aquele policial lhe fez quase prometer que mataria Aline, uma mulher que ele nunca vira na vida, e que ainda por cima era filha de Hércules Menegaro. Guilherme sequer chegou a encontrá-la, e sentia como se deixasse alguma coisa para trás. E também havia Luiz. Seu melhor amigo, o homem que lhe ensinou tudo, que lhe ensinou a ser homem. Guilherme agora começava a compreender a última conversa dos dois, como se os pensamentos do falecido lhe invadissem a cabeça. Tudo fazia sentido, a Luiz estava certo em tentar matá-lo. Ele merecia, com certeza, mas ninguém morre em Tenemissa por merecer. Morre quem não é forte o bastante para matar primeiro. Então Guilherme tinha todo o direito de roubar os sonhos de Luiz, os planos de Luiz, os óculos de Luiz...
– No que você está pensando? – Perguntou Lia, intrigada e desconfiada.
– Nada – mentiu ele. Com um sorriso no rosto, ajeitou com o dedo os óculos sem lentes mais para cima do nariz, da mesma forma como Luiz costumava fazer. Em sua cabeça, ele se lembrava daquela antiga conversa no bar, onde seu amigo lhe contava sobre os motivos que o fizeram retornar à ilha. “lá fora é apenas um monte de cidades com um monte de pessoas” disse ele, e Guilherme agora via como ele tinha razão. O seu encantamento por aqueles humanos estranhos começava a se distorcer em repulsa. “Você pode ser livre sim, mas será livre sendo ninguém e fazendo nada. Aqui você pode estar preso, mas você está fazendo a sua própria história”. Luiz tinha razão. Ele sempre teve razão.
– Nada mesmo? – Insistiu Lia. Guilherme a puxou pelo braço e lhe deu mais um beijo, profundo, vívido. Afogava seu antigo eu na antiga paixão dos dois, que ainda parecia arder apesar da mútua desconfiança.
– Vem – disse ele, varrendo para longe seus pensamentos anteriores – nós temos que comemorar –
            E juntos eles caminharam, enquanto uma multidão se estendia pela praia para ver o fenômeno de diversos navios vindos de um lugar inexistente encalhar naquelas areias, deixando pessoas que não eram pessoas correrem livres para um maravilhoso mundo novo.